Enquanto mexia nas bonecas pensava no quanto nunca tinha gostado de bonecas em sua infância. Achava um despropósito que tantas histórias incríveis fossem vividas por coisas tão sem graça.
Criava para ela própria as aventuras de brincadeira. Sob a mesa da copa, embaixo da cama ou no quintal, qualquer lugar era bom pra viver uma nova história.
Apenas uma boneca a acompanhava naquela época, não como parceira, mas como interlocutora, sabia que nela podia confiar, afinal daquela boca jamais sairia nada, ser boa ouvinte era a única serventia daquela pequena estátua fabricada em larga escala, por isso só precisava de uma.
Agora, enquanto arruma o quarto da filha, perde as contas de quantas bonecas entulham o espaço, há bonecas de todo tipo: sorridentes, cabeçudas, sonadas, pretas, brancas, de pano, de plástico e há ainda um exemplar bizarro, feito em silicone reproduzindo uma criança de verdade, medonha. Foi veementemente contra a compra, mas agora ela jaz empilhada e espalhada com as outras, não menos inútil, pois somente agradam a pequena enquanto outra nova não chega para substituí-la.
Pensa que, com uma infância assim, a filha aprende mais como é o mundo de verdade: volátil e descartável, do que como é o mundo da fantasia: surpreendente e vasto, do qual se é afastada tão logo o sangue desce pelas coxas.
Arrumar este quarto parece tão inútil quanto são as bonecas, então o deixa. Convidada pela brisa que vem das janelas escancaradas decide seguir para o jardim, é lá que fazia algo de que se orgulhava, afinal, as plantas de que cuidava, no mínimo, devolviam oxigênio para o ambiente.
Sempre gostou das plantas. Sabe o que esperar das plantas, se a terra está empobrecida, mirram; se recebem pouca água, as folhas amarelam, ressecadas; se estão encharcadas demais, as folhas murcham e escurecem.
Além disso, elas só entregam o que podem, nada de surpresas, florescem sempre na mesma época e refletem na aparência os cuidados que recebem, e sobre isso não há dúvida, desde que seus inúmeros tratamentos começaram e tem menos disposição para se desgastar dando explicações do que faz fora da cama, suas roseiras deixaram de ser hastes delicadas para se tornarem ferozes galhos espinhosos e desgovernados espraiando-se por todo o espaço.
Elas perderam seu ar ornamental e especialmente hoje, quando seus botões estão se abrindo por toda a parte, estão muito vistosas, talvez tenha sido este o chamado selvagem levado pela brisa que a atraiu para o canteiro.
Põe-se a admirá-las, os galhos se alastram por todos os lados desde a base do tronco e não só para cima, como eram quando regularmente podados. Em verdade, já se nota que as brancas e amarelas começaram a se embaraçar e fundir.
As corais, sempre tão delicadas e tímidas, não cresceram nem competem por mais espaço, porém suas flores estão imensas, gordas e as pétalas caem pelas beiradas porque o miolo é incapaz de sustentá-las. Antes cortava-as assim que desabrochavam e as espalhava pelos vasos da casa. Nunca as viu assim, abrindo-se ao bel prazer, estourando.
O comportamento das vermelhas é o mais difícil de decifrar. Embora entregues à própria sorte, elas mantêm os galhos alinhados e a distribuição dos botões continua uniforme, porém, nem as brancas ou as amarelas avançam sobre seu espaço, e as corais despetalam longe dali. Há uma altivez nelas que não compreende, chega a invejá-las, diante do estado decrépito de sua aparência.
Quando o primeiro corte apareceu em sua pele e nada sarava a carne lacerada, experimentou pela primeira vez a angústia diante do desconhecido. Contudo, não deu mais atenção do que julgou que seu corpo merecia e entregou sua sorte ao tempo, ele cicatrizaria a ferida, como era a lei.
Mas desconfiou de sua resolução ao notar que outros cortes menores surgiram, como finas rachaduras, que só enxergava tateando. A princípio tinham o aspecto de uma fina risca, uma ruguinha, até que se tornavam cortes que sangravam.
Em uma, duas ou três semanas secavam, deixando aquela região da pele pardacenta. Mas então, outra linha fina cruzava seu traçado e começava tudo outra vez, infeccionando as que ainda se curavam.
Muitas apareceram, subiam desde suas coxas, tomaram a lombar, as ancas e então o ventre, eram como uma erva daninha avançando sobre seu corpo.
… Nada explicava seu estado, ninguém encontrava a raiz do problema.
A hidratação não disfarçava o aspecto da pele pardacenta, experimentou todo tipo de unguentos, óleos, benzimentos, banhos, defumações, e o que mais lhe recomendassem, mas a coisa só piorava, os cortes ficavam maiores, sobrepondo-se, sobre a pele infeccionada que depois morria.
Sua tez cheirando à hidratante de macadâmia e pus entorpecia a família. A filha fugia do seu abraço e o marido a rechaçava, bradando “você está louca, vá ao médico”, ela foi, mas nada explicava seu estado, ninguém encontrava a raiz do problema.
Aflita apelou ao esotérico, à igreja, ao culto, à missa, à reunião, ao passe, aos cristais, ao terreiro, fez simpatia, mas nenhum demônio, obsessor ou feitiço foi encontrado para ser removido. Mandaram que ficasse deitada, para descansar, devia ser estresse. Que tivesse calma, dali a pouco alguém poderia trazer, quem sabe, uma pílula milagrosa de algum frei morto há muito tempo, fabricada por freiras muito beatas e que, tal como ela em seu corpo, viviam enclausuradas.
Naquela manhã, quando saiu para o jardim e viu suas roseiras vivas, mesmo que negligenciadas, sentiu uma ponta de esperança para si mesma. E a curiosidade com a obstinação das roseiras vermelhas lhe era uma sensação muito mais reconfortante do que a de estar no quarto cheirando à cânfora. De fato, a mera lembrança da fragrância lhe despertava a necessidade intensa de um banho.
Já não suportava os cheiros adocicados das loções. Tão pouco podia seguir tolerando os aromas mentolados aspergidos pela casa na tentativa de mascarar sua mumificação, em estágio cada vez mais avançado. Agora seu tronco estava tão acastanhado quanto suas pernas e o colo começava a se desmanchar.
Ergueu a cabeça para sentir os raios de sol penetrando no rosto e mãos e assim, inebriada, despiu-se da camisola e seguiu nua até a mangueira de onde a água jorrou com força. Elevou a serpente sobre a testa como se estivesse recebendo uma benção e deixou a torrente fria lavar seu corpo amorfo.
Sentiu que desta vez eram as roseiras que a observavam com espanto, especialmente as vermelhas, que se destacavam soberanas em meio a algazarra das demais, como se salivassem pela água em que ela se deleitava, embrenhou-se então entre os galhos, irrigando todo o canteiro, parecia-lhe que se regozijavam com a umidade inesperada.
Ao alcançar o perímetro das rosas vermelhas constatou que os galhos jovens eram verdes, porém os mais antigos eram pardacentos como sua nova pele. Olhando ainda mais de perto, entendeu de onde vinha o poder carmesim, seus espinhos eram robustos e pontiagudos como jamais vira, e ela não resistiu à tentação de tocá-los com suas mãos descarnadas, enquanto das rachaduras de seus ombros a água pingava como seiva.
Quando sua menina chegou da escola, encontrou o quarto arrumado de um jeito novo, as bonecas estavam todas de bruços com a cara para o chão, por isso nenhuma delas a viu entrar ostentando uma nova irmã, mas tão pouco a pequena fez questão de lhes apresentar, já que só tinha olhos para seu mais novo objeto de amor. Saiu, então, chamando a mãe pela casa, a fim de mostrar-lhe sua nova filhinha.
O grito estridente da menina atraiu a empregada e o pai, que na garagem descarregavam as compras do carro. Em meio ao roseiral abandonado repousava a mãe, entranhada à roseira vermelha com um sorriso largo estampando no rosto voltado para céu, tingido de vermelho do sangue que escorria pelas têmporas adornadas por uma coroa de espinhos, parecendo, a quem via de longe uma rainha em seu trono.
Monique Bonomini, de Poá, São Paulo, atua com revisão e leitura crítica. É autora de Abismos para evitar ruínas (2023), e De onde você tira essas ideias? (2024). É uma das coordenadoras do Coletivo Escreviventes, integrante do Coletivo Ruído Rosa e do Clube de Ficcionistas.